Com a finalidade equilibrar as contas públicas sob o pretexto que devido as medidas adotadas de enfrentamento a COVID-19 houve aumento significativo das despesas públicas, face à necessidade de ações governamentais para o combate à Pandemia, nas áreas de assistência social e saúde, como aquisição de equipamentos hospitalares, medicamentos e contratação de profissionais de saúde, bem como que as receitas tributárias diminuíram significativamente em razão da crise econômica gerada pela pandemia, foi editada a Lei 17.293, de 15/10/2020 que alterou o inciso III, do artigo 13, e acrescentou o artigo 13 A, na Lei 13.296, de 23/12/2008.
Artigo 13 – É isenta do IPVA a propriedade:
[…]
III – de um único veículo, de propriedade de pessoa com deficiência física severa ou profunda que permita a condução de veículo automotor especificamente adaptado e customizado para sua situação individual. (NR), (grifo nosso).
– Inciso III com redação dada pela Lei nº 17.293, de 15/10/2020.
Artigo 13-A – Fica o Poder Executivo autorizado a conceder, na forma e condições estabelecidas pela Secretaria da Fazenda e Planejamento, isenção de IPVA para um único veículo de propriedade de pessoa com deficiência física, visual, mental, intelectual, severa ou profunda, ou autista, que impossibilite a condução do veículo. (grifo nosso).
– Artigo 13-A acrescentado pela Lei nº 17.293, de 15/10/2020.
Antes de adentrar na questão da inconstitucionalidade dos dispositivos acima citados, vale lembrar que os Benefícios Fiscais concedidos à pessoa com deficiência (Isenção de IPI, IOF, ICMS e IPVA) este último, ora em discussão, foram construídos como uma forma de realizar políticas públicas consistentes no fortalecimento do processo de inclusão social das pessoas beneficiadas, na facilitação da locomoção dessas pessoas e na melhoria das condições para elas exercerem suas atividades, buscarem atendimento para suas necessidades e alcançarem autonomia e independência.
Essas políticas, importante ressaltar, têm natureza constitucional, além de estar conectadas com direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, em especial com a dignidade da pessoa humana.
Essa investida Legislativa no âmbito das desigualdades físicas entre deficientes, corporifica uma das mais expressivas e odiosas formas de discriminação.
Negar à pessoa portadora de deficiência a política fiscal que substância verdadeira ação afirmativa significa legitimar violenta afronta aos princípios da isonomia e da defesa da dignidade da pessoa humana.
O Estado Soberano deve assegurar por si ou por seus delegatários o postulado do acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
Incumbe à legislação ordinária propiciar meios que atenuem a natural carência de oportunidades dos deficientes e não restringir, como fez a norma em questão.
Deve-se preponderar o princípio de proteção aos deficientes, ante os desfavores sociais de que tais pessoas são vítimas.
A integração social dos deficientes deve ser examinada prioritariamente, pois os interesses sociais mais relevantes devem prevalecer sobre os interesses econômicos menos significantes.
Segundo o novo diploma legal, não estariam mais isentos da cobrança de IPVA os veículos automotores que contenham apenas câmbio automático e direção hidráulica. Com o novo regramento criou-se discriminação inconstitucional entre as pessoas deficientes, haja vista que as que adquirirem veículo sem adaptações, para condução própria, serão tributadas, enquanto as que comprarem carro com alguma adaptação não o serão.
A diferenciação, feriu o princípio da igualdade, tratou como fato gerador da tributação ou da isenção, não pela condição vulnerável do contribuinte deficiente, mas pelo tipo de adaptação implementada no veículo.
Os Atos Ilegais foram ratificados pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo ao regulamentar a Norma:
Exigências para obter a isenção
A isenção de IPVA para pessoas com deficiência passou a ser condicionada à indicação de restrições no campo “Observações” da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Somente determinadas restrições darão direito ao proprietário de usufruir do benefício, conforme a tabela das restrições médicas com a letra indicada na CNH:
https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/ipva/Paginas/Exig%C3%AAncias-para-obteraisen%C3%A7%C3%A3…
Nota-se claramente que o novo regramento legal estadual (alterações impostas pela Lei Estadual nº 17.293/2020 à Lei nº 13.296/2008) apresentou desconformidade tanto em face da Constituição da República – ao ofender aos Princípios constitucionais: – da igualdade – da dignidade da pessoa humana – da não discriminação – do direito à mobilidade sem barreiras – da inclusão das pessoas com deficiência, quanto em face da legislação ordinária federal, ao instituir formas de discriminação aos deficientes.
Vejamos no exemplo abaixo:
Uma pessoa com limitação de movimentos, encurtamento ou mesmo amputação da perna direita necessitaria de adaptação, com a inversão dos pedais do acelerador e do freio e, assim, seria contemplada com a isenção de cobrança de IPVA. (restrição da CNH: C),
Já outra pessoa com amputação da perna esquerda necessitaria somente de um carro automático, de maneira que não seria isento da cobrança do recolhimento do IPVA, ainda que com grave limitação de mobilidade. (Restrições da CNH: D, F e G).
A alteração Legislativa vai na contramão das próprias normas referente ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pois estas não condiciona a respectiva isenção tributária ao fato de o veículo automotor ser especificamente adaptado e customizado à situação individual da pessoa com deficiência, de maneira que o Convênio ICMS Confaz nº 38, de 30 de março de 2012, prevê que:
“ficam isentas do ICMS as saídas internas e interestaduais de veículo automotor novo quando adquirido por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal” (cláusula primeira);
Da mesma forma a Lei nº 8.989/95, que dispõe sobre a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI na aquisição de automóveis para pessoas com deficiência dispõe que:
“ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a 2.000 cm³ (dois mil centímetros cúbicos), de, no mínimo, 4 (quatro) portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustível de origem renovável, sistema reversível de combustão ou híbrido e elétricos, quando adquiridos por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal (art. 1º, inc. IV, da Lei nº 8.989/95)”
Vale lembrar que recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADO 30 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), por meio da qual se pretendia a inclusão das pessoas com deficiência auditiva no rol do art. 1º, inc. IV, da Lei 8.989/95, e por ocasião do julgamento da ADO 30, o Supremo Tribunal Federal entendeu que:
“a isenção do IPI de que trata o art. 1º, IV, da Lei nº 8.989/95 foi estabelecida como uma forma de realizar políticas públicas de natureza constitucional, consistentes no fortalecimento do processo de inclusão social das pessoas beneficiadas, na facilitação da locomoção dessas pessoas e na melhoria das condições para que elas exerçam suas atividades, busquem atendimento para suas necessidades e alcancem autonomia e independência”
O Supremo Tribunal Federal entendeu que:
“o poder público, ao deixar de incluir as pessoas com deficiência auditiva no rol daquele dispositivo, promoveu políticas públicas de modo incompleto, ofendendo, além da não discriminação, a dignidade da pessoa humana e outros direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, como os direitos à mobilidade pessoal com a máxima independência possível, à acessibilidade e à inclusão social. Tal omissão constitui violação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada conforme o art. 5, § 3º, da CF/88. Necessidade do controle jurisdicional”
A promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme disposto no artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal.
O disposto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, reconhece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
O disposto no art. 19, inc. III, da Constituição da República, também vai no mesmo sentido de que é vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios criar distinções entre brasileiros.
A Convenção Internacional, da qual o Brasil é signatário, dispõe sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e tem como propósito:
“promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (art. 1º).
O Brasil comprometeu-se:
“a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência, e, para tanto, os Estados Partes se comprometem a adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção; bem como adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência (art. 4º, 1, a e b)”;
“reconhecer que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei”;
“proibir qualquer discriminação baseada na deficiência e garantir às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo; a fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação”;
“adotar todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida; as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias (art. 5º)”;
“adotar as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público”, com a eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade (artigo 9º, 1)”;
“tomar medidas efetivas para assegurar às pessoas com deficiência sua mobilidade pessoal com a máxima independência possível, facilitando a mobilidade pessoal das pessoas com deficiência, na forma e no momento em que elas quiserem, e a custo acessível; e facilitando às pessoas com deficiência o acesso a tecnologias assistivas, dispositivos e ajudas técnicas de qualidade, e forma de assistência humana ou animal e de mediadores, inclusive tornando-os disponíveis a custo acessível (art. 20, a e b)”.
De se destacar que Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, nos termos do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, ingressou no ordenamento jurídico pátrio com força equivalente à emenda constitucional, visando à ampliação dos direitos fundamentais do homem.
Não menos importante temos o Estatuto da Pessoa com Deficiência que dispõem:
“toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação (art. 4º, caput, Lei nº 13.146/2015)”
O mesmo diploma legal trata as pessoas com deficiência e as pessoas com mobilidade reduzida em patamar de igualdade, fazendo apenas uma única exceção no art. 47, de maneira a determinar a reserva de vagas de estacionamento para veículos que transportem pessoa com deficiência com comprometimento de mobilidade. E vai mais além ao dispor que o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso (art. 46, caput, da Lei nº 13.146/2015);
CONCLUSÃO
Em que pese a louvável iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, no tocante ao equilíbrio das contas públicas, agiu ao arrepio da Constituição, sendo, portanto, o ato totalmente inconstitucional e contrário a todo ordenamento jurídico.
Exige-se do Gestor Público criatividade em tempos de crise, jamais podendo este, por razões econômicas suprimir direitos há muito tempo conquistados.
O ato normativo em questão é inconstitucional, pois possui vícios materiais incompatíveis com a Nossa Constituição, sendo inadmissível a Administração privar a pessoa com necessidades especiais de um benefício legal que se coaduna às suas razões finais, por motivos humanitários, observados os valores básicos da igualdade de tratamento, oportunidade e a proteção à dignidade da pessoa humana, opções já realizadas pelo legislador federal.
A regra de isenção inspira-se na promoção da justiça social e da igualdade. Posto isso, a distinção feita pelo Governo Estadual revela-se injusta, Interpretação desta natureza seria contrária ao espírito da norma, ofendendo o princípio da razoabilidade que deve nortear, por preceito constitucional, a edição do ato administrativo.
É dever do Estado garantir efetivamente o respeito pela integridade, dignidade e liberdade individual das pessoas com deficiência e de reforçar a proibição da discriminação destes cidadãos através de leis, que atendam especificamente às suas características e promovam a sua participação na sociedade.
Portanto, está caracterizada a discriminação por parte do Governo de São Paulo, em razão da distinção e restrição imposta pela Lei Estadual, com o nítido efeito de prejudicar, impedir o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência.
Resta concluir que a desditosa Lei tem seus dias contados e, para tanto, faz-se mister a força do Poder Judiciário, através dos mecanismos de defesa da Constituição.
Por ROBERTO DE FARIA – OAB/157.051
REFERÊNCIAS:
Curso de Direito Constitucional – Clever Vasconcelos – 5ª. Edição.
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2008/lei-13296-23.12.2008.html
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2020/lei-17293-15.10.2020.html
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8989.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituicaocompilado.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4732377
https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2012/CV038_12
Processo Administrativo SEI Nº 29.0001.0143215.2020-05 – Promotoria de Justiça de Direitos Humanos – Promotor de Justiça Dr. Wilson Tafner – MPSP.
(STJ – REsp: 1390345 RS 2013/0222900-8, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 24/03/2015, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/04/2015)